Festival FORTE 2016

Uma rápida pesquisa online e consegue-se obter as seguintes informações: a ocupação do actual território da vila de Montemor-o-Velho remonta à Pré-História. As referências ao seu imponente castelo aparecem pela primeira vez no século IX. No ano de 848, o asturiano Ramiro I tomou a sua posse. Contudo, a reconquista do Mondego foi empreendida por Fernando Magno, rei de Leão, que por sua vez o entregou ao Conde Sesnando. A sua importância estratégica fez desta vila um centro de atracção, tendo recebido o primeiro foral em 1212. Montemor foi ainda, durante séculos, terra de infantado, primeiro de D. Sancho e Dona Teresa, depois de D. Afonso IV (1322), mas também de D. Pedro, Duque de Coimbra (1416). Em 1472, D. Afonso V faz Marquês de Montemor-o-Velho D. João de Portugal, mais tarde Duque de Bragança. Este castelo é bastante bonito de visitar, estando em bom estado de conservação. De lá se desfruta de uma bela vista sobre os arrozais do rio Mondego e restantes terrenos de cultivo.
Esta descrição levou-me a recordar uma afirmação de Régine Pernoud, medievalista francesa, que na sua obra “O Mito da Idade Média” nos diz o seguinte: “Negligenciando a formação do sentido histórico, esquecendo que a história é a memória dos povos, o ensino forma amnésicos. Hoje censura-se, por vezes, as escolas, as universidades, de formarem irresponsáveis (escrita em 1977, esta asserção encaixa na perfeição no espírito das praxes universitárias portuguesas da actualidade), privilegiando o intelecto em detrimento da sensibilidade e do carácter. Não mais que o irresponsável, o amnésico não é uma pessoa completa; nem um nem outro desfrutam desse pleno exercício das suas faculdades, que é o único a permitir ao homem, sem perigo para ele próprio e para os seus semelhantes, uma verdadeira liberdade.”
E o que é que isto tudo tem a ver com o Festival Forte? perguntam vocês. Tudo! Pois é da sensibilidade e do carácter de um evento único, realizado num castelo medieval, que vos vou falar.

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Antes de me deslocar à bela vila de Montemor-o-Velho (com o intuito de fazer a cobertura do festival para o Arranca Corações), já eu havia efectuado o trabalho de casa, estando portanto totalmente tranquilo quanto à elevada qualidade do line-up deste festival para cada um dos seus respectivos três dias. Confesso no entanto que o dia que mais me entusiasmava era, por motivos óbvios (pelo menos para mim), o primeiro dia do Festival, Quinta-Feira, 25 de Agosto.
À meia-noite em ponto subia ao palco Ben Frost, músico australiano que fez da Islândia a sua pátria, para aquela que foi na minha opinião a performance mais bem conseguida de todo o festival.
Lendo algumas entrevistas online, fica-se com a ideia de que Ben Frost corresponde ao estereótipo do australiano (refiro-me ao vernáculo utilizado em quase cada uma das suas frases), naquela que será porventura alguma reminiscência inconsciente da colonização da Austrália, a qual teve por objectivo esvaziar as superlotadas prisões inglesas, nos finais do século XVIII. Deixando de parte as especulações importa apenas referir que a entrada serena de Frost em palco (bem composto com uma indumentária de passear num Domingo à tarde primaveril pelas ruas de Reiquiavique), não faria supor a catarse sónica com que brindou a audiência ao longo de uma hora. Abeirando-me o mais possível de uma das colunas de som (sim, eu sou daquele tipo radical à la Merzbow que não leva hearplugs para os concertos), deixei-me invadir por aquelas sonoridades densas que expurgam todas as impurezas do mundo. Este terá sido certamente o concerto mais exigente do festival, o qual ainda assim obteve um generoso aplauso por parte da audiência.

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Aturdido pelo clamor da maquinaria (na qual se inclui a guitarra) do australiano, no espaço de minutos, passei ao frenesi da adrenalina somente proporcionado pela perspectiva de ver e ouvir um projecto musical lendário: Cabaret Voltaire (duas horas antes tinha entrevistado Richard H. Kirk para a Rádio NFM. O podcast da emissão pode ser acedido AQUI).

(…) Richard H. Kirk spent much of his career waiting for the future. He remains a resident of Sheffield, a city with a rich tradition in electronic music, once home to Warp Records, as well as the Human League, Heaven 17 and Moloko among others. However, when he, Stephen Mallinder and Christopher Watson formed Cabaret Voltaire in 1973, fired up by Eno-era Roxy Music and William Burroughs’s cut-up techniques, there was no such tradition at all. “The only musical tradition then was heavy metal, rubbish cover bands and crooners like Tony Christie.” (…)
David Stubbs, Warp Records: Richard H Kirk looks back on a futuristic life

Esta banda (agora reduzida apenas a um dos seus três elementos fundadores), que percorreu os territórios das sonoridades Industrial, experimental, electrónica, post-punk, technopop, e acid house, e cujas actividades se iniciaram no ano do meu nascimento (1973), constituiu um excelente cartão-de-visita para qualquer festival em qualquer parte do mundo. E esta foi uma aposta ganha à partida pela organização do Festival Forte, que aliou o didactismo da apresentação dos Cabaret Voltaire às gerações mais jovens, à glorificação nostálgica dos anos 80, para gáudio das gerações mais velhas. Kirk não descurou as expectativas naquele que foi um concerto frenético, perpassado pelas imagens vídeo de um mundo moderno em permanente convulsão político-social.

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Das 2h às 4h da manhã aproveitei o set de APPARAT para descansar num dos confortáveis sofás que a organização colocou nalgumas partes do recinto. Às 04h era chegada a hora de regressar à área limítrofe ao palco para assistir ao set de uma outra lenda da música electrónica. Daniel Miller, o fundador da Mute Records (também ele com uma curta carreira musical entre 1978 e 1979 enquanto The Normal com o seu Korg 700s). Duas horas de uma toada dançante que prova o domínio irrepreensível de Miller sobre aquilo que de melhor se faz na música de dança contemporânea.
Às 06 da manhã iniciava o set de Marcel Dettmann, nome proeminente da cena techno actual que também transporta consigo a griffe do clube berlinense Berghain. Aguentei-me até às 8:30 da manhã, entre a dança e conversa amena com amizades firmadas horas antes naquele mesmo festival. É que o Festival Forte também consiste nisso mesmo – no estabelecimento de pactos cúmplices. Momentos que reflectem o credo PLUR (Peace Love Unity Respect), intrínseco à cultura raver. Imbuído desse espírito, e quase a finalizar este relato, aproveito esta oportunidade para deixar o meu profundo agradecimento à Diana Nunes e ao Saúl Costa (vocês são fantásticos!). Aproveito ainda para expressar aqui o meu agradecimento às seguintes pessoas: Gabriel Mendes, Manuel Fernandes, Irina Sales, Lucas Foucart, Diana Andrade, e João Lobo (pela gentil cedência das fotos que ilustram esta entrada).
Em suma, um festival em que o saber ser se alia ao saber estar, num evento que é um verdadeiro gerador de epifanias. Para já, apenas saudades do Futuro, até à próxima edição, em 2017!